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Celina Turchi no Epi2017: Excelência científica e papel estratégico do SUS na resposta ao zika


A apresentação dos percursos de uma pesquisa e de seus resultados aos pares é um importante momento na carreira de todo e qualquer cientista. No entanto, somente a humildade dos gigantes faz tais momentos entrarem para a história. Essa sensação tomou a plateia após a a conferência “A resposta brasileira à emergência da epidemia pelo vírus zika”, proferida por Celina Turchi Martelli no terceiro e último dia do X Congresso Brasileiro de Epidemiologia, na manhã de 11 de outubro, em Florianópolis (SC). Uma das dez personalidades da ciência mundial pela revista Nature e vencedora – junto com a também pesquisadora Adriana Melo – do prêmio Personalidade do Ano do jornal O Globo, Celina compartilhou a experiência de fazer pesquisa epidemiológica em meio a uma emergência sanitária de dimensões internacionais, ressaltando o alto nível do conhecimento produzido pela comunidade científica brasileira e o papel de um sistema público e universal de saúde como o SUS como elementos que possibilitaram a rápida mobilização de esforços acadêmicos e políticos frente à comoção causada pela microcefalia.

Reinaldo Souza dos Santos, pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP/Fiocruz) e integrante da Comissão de Epidemiologia da Abrasco, abriu a sessão e apresentou a líder do Grupo de Pesquisa da Epidemia da Microcefalia (MERG, em inglês), atuando no Centro de Pesquisas Aggeu Magalhães (CPqAM/Fiocruz). Numa fala marcada pela clareza científica, Celina apresentou os antecedentes epidemiológicos; os marcos da descoberta brasileira da síndrome congênita de microcefalia associada ao vírus zika; os desdobramentos nacionais e internacionais da emergência sanitária, e o panorama pós-emergência.

“Olhando pelo retrovisor, acho que posso dizer que tomamos as decisões corretas, tanto do ponto de vista da saúde pública como da pesquisa, embora não tenham sido fáceis frente à complexidade e o impacto social da epidemia”, registrou a pesquisadora, apresentando o cenário epidemiológico até então conhecido do zika vírus, classificado nos manuais de virologia como uma zoonose de virulência benigna e de baixíssima incidência em humanos.

O fortalecimento mundial das arboviroses e as dificuldade do controle vetorial em ambientes urbanos, no entanto, iniciariam um novo capítulo dessa história. Particularmente no Brasil, em meio à avalanche de mais de 1,600 milhão de notificações de dengue em janeiro de 2015, foram registrados também casos da febre chikungunya e de uma doença misteriosa – descrita como uma dengue branda – cujos primeiros focos apareceram no Nordeste brasileiro. Em agosto do mesmo ano, duas neuropediatras viram o aumento de casos de microcefalia nos hospitais do SUS no Recife e acionaram a Vigilância da Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco e a mídia, gerando uma onda de espanto e medo entre gestantes e puérperas. Em outubro, a hipótese de relação de ambas emergências já circulava na comunidade científica. Foi quando Celina e o MERG foram convocados a responder, por meio da investigação epidemiológica, duas perguntas: se o excesso de casos de microcefalia indicava uma nova síndrome e quais seriam os determinantes dessa ocorrência excepcional.

“Em 11 de novembro, quando o Ministério da Saúde do Brasil declarou uma emergência de saúde pública, a meu ver foi uma decisão corajosa e, sem dúvida, dependeu da competência técnica da Vigilância Epidemiológica da época e também dos pesquisadores brasileiros para compreender que se tratava de uma ameaça de transmissão do vírus zika em uma população suscetível com um efeito adverso até então não relatado na literatura, com transmissão vetorial e sexual e forte ação teratogênica”, analisou Celina. Poucos meses depois, a Organização Mundial de Saúde (OMS/WHO) declarou a epidemia como emergência de saúde pública internacional (PHEIC, na sigla em inglês), também mobilizada, na visão da cientista, pela eficácia da ação da comunidade da saúde do país.

Solidariedade como marca científica: Coube ao MERG iniciar e liderar uma série de estudos, reunindo pesquisadores de diversas instituições brasileiras e estrangeiras. A primeira iniciativa foi descrever as afecções acometidas em dezenas de recém-nascidos, num contingente grande de manifestações, como desproporção craniofacial, má formação dos membros, anormalidade ocular, lesão do nervo ótico, déficit auditivo, ventriculomegalia, calcificação grosseira, entre outros.

As definições da epidemia como uma emergência nacional e global deram a magnitude e direcionaram prioridades de investimento e de coordenação de pesquisas, o que foi o diferencial para responder as demandas solicitadas pela sociedade. “Aprendemos a usar terminologias como fast track. Queríamos tudo rapidamente e a colaboração entre os grupos de pesquisa passou a ser uma exigência. Compartilhar protocolos e fazer análises conjuntas passaram a ser parte da nossa rotina de trabalho. Só através dessa profunda articulação entre serviços de saúde e pesquisa foi possível dar uma resposta ágil durante o período de emergência”, relembrou Celina, fazendo referência ao papel da solidariedade em tempos adversos como destacado por Maria Amélia Veras na abertura do Congresso. “Não só concordo como testemunho que vi e vivi essa solidariedade da comunidade da saúde pública durante e após a epidemia de zika”, disse a professora, emocionada.

A emergência possibilitou também a realização do estudo de caso-controle – o primeiro no Brasil para esse tipo de investigação – tendo passado por todos os requisitos do Comitê de Ética e demais orientações internacionais. A investigação começou em janeiro de 2016 e foi desenvolvida em oito hospitais do SUS, em Recife. “A maior dificuldade metodológica foi estabelecer se utilizávamos casos já nascidos vivos, com recrutamento retrospectivo, ou se faríamos com casos prospectivos. Foi uma decisão difícil, mas apenas um caso prospectivo daria certeza do quadro de infecção congênita”.

Celina destacou alguns resultados. Há diferenças expressivas entre os casos e o controles, tanto no peso como no tamanho gestacional, o que parece ser uma evidência da ação característica do vírus zika. Outros fatores de risco, como o abuso de álcool, de fumo ou exposição ao larvicida piriproxifeno, não tiveram associação comprovada à microcefalia, refutando hipóteses levantadas no início da epidemia e que foram amplificadas pela difusão de falsas notícias e de informações desencontradas em correntes virtuais. Os resultados preliminares do caso-controle foram publicados no ano passado pela revista Lancet Infected Diseases, e o estudo final foi aceito nesses primeiros dias de outubro para futura publicação na mesma revista. Ela apontou também as limitações enfrentadas, como trabalhar unicamente o estudo de caso com evidências de microcefalia e o pareamento dos casos unicamente pela área de residência, o que impediu uma melhor mensuração da relação entre a infecção por zika e as desigualdades entre os diferentes estratos socioeconômicos.

Sobre o panorama atual, a pesquisadora ressaltou que coortes e estudos multicêntricos em desenvolvimento poderão propiciar uma melhor ideia dos riscos da infecção em diferentes momentos gestacionais, sem esquecer de citar a importância dos estudos das ciências sociais e humanas em saúde que se detêm sobre as condições de vida das mães, filhos e filhas atravessados pelo zika.

“Ontem, ao encontrar os doutores Ricardo Ximenes e Thalia Araújo, eles frisaram que eu poderia esquecer tudo, menos de dizer que nós reforçamos a ideia de uma epidemiologia em defesa do SUS. Eu só penso o temor que teria sido dessa epidemia se, ao invés do SUS e de ótimas instituições de pesquisa que temos, nós tivéssemos todos os serviços de saúde terceirizados”, encerrou Celina Turchi Martelli, aplaudida com reverência e entusiasmo pela comunidade científica cuja razão e emoção ela soube tão bem expressar.


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